quinta-feira, 14 de abril de 2011

Cara ou Coroa


Na revista Joyce Pascowitch do mês de março (2011) há uma reportagem íncrivel de nome Cara ou Coroa, feita por Adriana Nazarian. É uma entrevista exclusiva com um dos maiores especialistas em Sexualidade no Brasil, o Psiquiatra e Psicodramatista Dr. Alexandre Saadeh. A meu ver ele consegue falar sobre dois temas super polêmicos de uma forma clara, compreensível e com a visão mais atualizada que temos dentro do estudo da Sexualidade Humana. Por isso, trouxemos para nossos leitores esta entrevista, na íntegra!

JP - Afinal, a homossexualidade é uma imposição do corpo ou da mente?

A.S.: A identidade e a orientação sexuais são definidas até os 3, 4 anos de idade. A identidade é a noção de ser homem ou mulher, e a orientação é a parceria sexual que você busca. Hoje, pesquisas de desenvolvimento cerebral intrauterino mostram que a existência de certo componente biológico é capaz de influenciar esse processo de definição. E a questão ambiental também conta. É esse conjunto de fatores que determina a orientação sexual. Não é uma opção, nem uma escolha. Muitas vezes, algum comportamento homossexual pode se manifestar na adolescência, o que não necessariamente irá configurar a pessoa como homossexual. Essa questão se caracteriza na fase adulta.

JP - A vontade de experimentar relações sexuais diversas, principalmente na adolescência, sempre existiu ou é um fenômeno dos dias de hoje?

A.S.: Isso sempre existiu. O troca-troca, as meninas treinando beijos com outras meninas... A diferença é que tudo acontecia por baixo do pano.

JP - Há mais homossexuais hoje do que no passado? Ou atualmente há mais espaço para se assumir?

A.S.: O número não aumentou, continua na proporção de 6% a 10% da população, dependendo do país. Existem cidades consideradas gays, é o caso de São Paulo, Buenos Aires, São Francisco, Nova York, mas isso acontece simplesmente porque essas pessoas buscaram esses locais para viver.

JP- Até em forma de brincadeira muita gente fala que não existe ex-homossexual. Afinal, existe?

A.S.: Não. O que existe são homossexuais que optam – e isso é uma escolha – por não transar com o objeto de desejo. Todo homossexual, masculino ou feminino, passa por um momento de sofrimento ao se perceber diferente da maioria. Alguns preferem não exercer a homossexualidade, ou seja, decidem casar com alguém do sexo oposto. Certamente vão transar menos com a esposa ou o marido. O individuo vai continuar com desejos de um homossexual, só que reprimidos.

JP- É possível ser feliz assim?

A.S.: O individuo em questão dirá que sim. Mas a verdade é que está excluído de sua própria vida. Tenho minhas duvidas se isso é ser feliz.

JP- Como definir o transexual?

A.S.: É aquele individuo que nasce com uma definição anatômica: ou é homem, ou é mulher, mas durante seu desenvolvimento, a identidade psíquica não bate com a física. É como se a pessoa nascesse no corpo errado. E o sofrimento é grande, pois todos cobram para que ela seja condizente com o sexo anatômico.

JP- O que causa essa sensação de estar no corpo errado?

A.S.: A principal teoria hoje é relacionada com o desenvolvimento do cérebro durante a gestação. É como se fosse uma má-formação decorrente dos hormônios masculinos que circulam no corpo da mãe durante a gravidez e, dependendo da fase, o cérebro vai desenvolver para um lado ou outro. A origem é química e gera uma estrutura funcional diferenciado. A noção de ser homem ou mulher acontece por volta dos 4 anos de idade. Nesse caso, mais uma vez tem a ver com questões biológicas, mas também com a estrutura familiar. Alguns fatos são marcantes no trabalho com transexuais, como um pai violento, ou a necessidade de complementar a mãe. Existem esses fatores psicológicos, porem a transexualidade não aconteceria se não houvesse a predisposição biológica.

JP- E como é o comportamento desde a infância?

A.S.: Existem muitos transtornos de identidade de gênero na infância que não vão evoluir necessariamente para o diagnóstico de transexual. É muito comum, por exemplo, crianças quererem experimentar a roupa da irmã, mas trata-se de uma brincadeira entre os gêneros. Mal comparando, acontece o mesmo no carnaval. Homens se vestem de mulher, o que não significa que sejam gays.

JP- É muito mais comum ver homens fantasiados de mulher do que mulheres de homem. Por quê?

A.S.: Isso acontece no Brasil, mas na maioria dos países é mais freqüente. É uma questão cultural. É muito comum, por exemplo, mulheres descobrirem que são homossexuais só depois de se casar e ter filhos. Elas não sabiam dessa condição antes? Tinham noção, mas o sentimento estava reprimido, afinal existe um papel a ser cumprido na sociedade.

JP- Como a família deve lidar com crianças que se vestem com roupas do sexo oposto?

A.S.: Quando passa a ser vital, quando ela sofre por não poder brincar. Qualquer escorregada facilita a situação e, dependendo da idade, pode ser determinante. Não estou dizendo que existe um jeito certo de ser, nem que o legal é o menino ser homem, ou a menina ser mulher, mas a verdade é que na nossa cultura ninguém espera um filho homossexual, ou transexual. A criança nasceu e está na maternidade: ou é azul ou é rosa. Existem crianças que já estarão definidas e aí não há outro jeito senão facilitar.

JP- Na pratica, qual a diferença entre transexual e homossexual? Um homem gay, por exemplo, com comportamento mais afeminado, gostaria de ter nascido no corpo de uma mulher?

A.S.: Não. Ele gosta do corpo dele, curte ter pelos e tem prazer em ejacular. E também gosta do corpo de outro homem, pode ser mais delicado, mas isso não faz com que queira ser mulher. E tem a questão do papel de gênero que é o quanto eu manifesto isso socialmente. Fora do Brasil, grande parte das drag queens, por exemplo, não é homossexual. São heterossexuais que vivem esse papel feminino de forma quase teatral. No dia a dia são homens casados e com filhos.

JP- O transexual sempre vai querer fazer a cirurgia para ter uma vida melhor?

A.S.: Não basta ser transexual para fazer a cirurgia. Por ser irreversível, a indicação deve ser muito precisa. Além disso, existe um longo processo pré-operatório. É preciso viver no gênero desejado, ser aceito socialmente, tomar hormônio. A psicoterapia, a avaliação psiquiátrica e psicológica por no mínimo dois anos também são imprescindíveis. É preciso esperar o tempo especificado pelo conselho de medicina.

JP- Como é a vida depois?

A.S.: Depende. A maioria das minhas pacientes operadas está estável. Como no passado o processo era lento (desde 2008, o SUS realiza duas cirurgias por mês), elas esperaram muitos anos e tivemos a oportunidade de discutir diversos assuntos na terapia. Elas sabem que não serão mulheres completas, apesar de estarem o mais próximo possível disso. Serão inférteis e já na menopausa, independente da idade. Sempre brinco com minhas pacientes levantando a questão: “O que tem de bom em se tornar mulher? Vocês precisam ser bonitas, magras, boas executivas, saber transar...”. Elas sabem que ser mulher não é fácil no mundo moderno.

JP- Existem mais homens querendo fazer a cirurgia?

A.S.: Na maioria dos países, é mais comum ter homens querendo trocar de sexo. Existem apenas dois países em que essa proporção se inverte: República Tcheca e Polônia, mas o curioso é que não se sabe o motivo.

JP- Como é a curirgia em mulheres que gostariam de ser homens?

A.S.: No Brasil, desde agosto do ano passado, ficou estabelecido que todo o procedimento cirúrgico está liberado (retirada das mamas, dos ovários, do útero) com exceção da neofaloplastia (construção do pênis). Essa etapa é um processo experimental que só pode ser realizada em hospital escola, como o HC, e hospitais públicos ligados à pesquisa. E nem todos os pacientes optam por essa etapa porque não é tão perfeita ou funcional; é como se houvesse uma prótese o tempo inteiro.

JP- Como é feita a triagem de quem pode ser operado?

A.S.: No último ano, cerca de 30% dos pacientes que me procuraram tinham algum transtorno de identidade de gênero, mas não eram transexuais. Recebo muitos pacientes supermasculinos que buscam a cirurgia sem nunca ter vivido como mulher. Acreditam que a vagina justifica a transformação e isso não é real. Outra coisa é que cada vez mais adolescentes me procuram.

JP- Os parceiros costumam aceitar homens que se tornaram mulheres?

A.S.: A aceitação é comum, pois costumam ser mulheres bem mais carinhosas. Além disso, elas têm - e dão – um prazer diferenciado para o parceiro. Mas, apesar dessas vantagens, é claro que, se a grande maioria pudesse escolher, preferiria já ter nascido no corpo definido. O mesmo vale para homossexuais: em geral, eles gostariam de ter nascido hétero, pois não se enfrenta grandes dificuldades sociais.

JP- A presença de uma transexual no Big Brother e o aparecimento na mídia da modelo Lea T. ajudam a lidar com o preconceito?

A.S.: De alguma forma sim, porque divulga o tema. Mas não devemos colocar essas personalidades como paradigmas, nem exemplo máximo de transexual. Para algumas transexuais, a Ariadna se comportou de forma ofensiva. A Lea T. já é uma figura mais interessante, modelo da Givenchy e superdiscreta. Ser transexual é a mesma coisa que ser homossexual: é uma característica da pessoa e não designa um aspecto de personalidade. Não faz o ser humano ser mais ou menos honesto, melhor ou ou pior. É a mesma coisa que ter cabelo loiro, ou olho azul: não há nada de cunho moral e ético envolvido no fato de ser transexual ou homossexual.

JP- Por que você escolheu essa área específica?

A.S.: Não foi uma escolha. Quando eu trabalhava no ProSex, projeto de sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, recebíamos alguns transexuais, mas o único tratamento era a terapia. Em 1997, o conselho de medicina estabeleceu a primeira resolução e o instituto precisava de alguém experiente na área de sexualidade e psicoterapia para trabalhar com essa população. Topei o desafio. Tive de estudar, entender tudo o que acontecia nesse universo e acabei fazendo meu doutorado em cima do tema. No começo eu era muito preconceituoso, por pura ignorância. Achava estranho conversar com uma pessoa vestida de mulher com traços masculinos. Hoje, lido com a maior naturalidade e algumas das minhas experiências profissionais mais emocionantes foram com transexuais. Sou padrinho de casamento, por exemplo, da primeira paciente que acompanhei. Hoje sou grato pela oportunidade. Muitas vezes, o problema está no nosso olhar.

JP- Como os transexuais eram tratados no passado?

A.S.: Existem grandes diferenças entre o Brasil e outros países. A situação dos transexuais é muito mais evoluída em lugares como Estados Unidos e Canadá, onde a cirurgia, o tratamento hormonal e o acompanhamento existem desde os anos 50. No Brasil, a classe médica enxergava o transexual com cuidado, até por conta do caso Roberto Farina, famoso nos anos 70 (em 1978, o cirurgião Roberto Farina foi condenado por realizar, em 1971, a primeira cirurgia do gênero no país. O processo foi movido pelo Conselho Federal de Medicina, porém o médico foi absolvido na seqüência. A Justiça entendeu na época que a cirurgia foi uma medida adotada para diminuir o sofrimento do paciente). E naquela época, até na faculdade de medicina, o transexual era sinônimo de prostituição, junto com travesti. Desde 1997, a situação melhorou, temos mais profissionais interessados no assunto e bons cirurgiões. Hoje, os transexuais brasileiros não precisam viajar ao Equador, Marrocos, ou até a Tailândia, como a Ariadna, para serem operados.

JP- E como o senhor acha que será no futuro?

A.S.: Acredito que o enfoque será cada vez mais em idades precoces. Da mesma maneira que os adolescentes estão chegando, as crianças também devem aparecer. Os pais vão trazer os filhos para orientação. O sofrimento será menor, e a inclusão, maior. Já o preconceito sempre existirá. Quando se trata de comportamento e vida humana, não há um padrão, nem certo ou errado. Existem possibilidades.




Entrevista com Dr. Alexandre Saadeh, por Adriana Nazarian. Joyce Pascowitch(mar/2011)




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